Personagens: Sócrates, Teodoro e Teeteto
III — Sócrates — Pois então, amigo Teeteto, chegou a hora de te exibires e eu de
examinar-te. Convém saberes que Teodoro já me fez o elogio de muita gente, assim
estrangeiros como Atenienses, porém nunca em termos tão calorosos como agora mesmo a teu respeito.
Teeteto — É desvanecedor, Sócrates, se não se tratar de alguma brincadeira.
Sócrates — Não é do feitio de Teodoro. Porém não quebres teu compromisso, sob o
pretexto de que ele quis pilheriar, para não o obrigarmos a depor. Bem sabes que ninguém o recusaria como testemunha. Reveste-te de confiança e não desfaças tua promessa.
Teeteto — É como terei de proceder, se pensas desse modo.
Sócrates — Dize-me o seguinte: não é verdade que estudas geometria com Teodoro?
Teeteto — É.
Sócrates — E também astronomia e harmonia e cálculo?
Teeteto — Pelo menos, esforço-me nesse sentido.
Sócrates — Eu também, jovem; com ele e com quem mais eu considere competente nesses assuntos. Não obstante, dado que eu apanhe regularmente bem semelhantes questões, há um ponto insignificante que eu desejaria examinar contigo e estes aqui. Dize-me o seguinte: aprender não significa tornar-se sábio a respeito do que se aprende?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Logo, é pela sabedoria, segundo penso, que os sábios ficam sábios.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — E isso difere em alguma coisa do conhecimento?
Teeteto — Isso, quê?
Sócrates — Sabedoria. Não se é sábio naquilo que se conhece?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Então, é a mesma coisa conhecimento e sabedoria?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão
satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo? Como vos parece? Qual de nós falará primeiro?
“Quem errar ou atrapalhar-se,
Como burro irá assentar-se”,
à maneira do que dizem as crianças no jogo de bola; quem não cometer nenhum erro, será rei e ficará com o direito de apresentar-nos as perguntas que entender. Por que não respondeis? Espero, Teodoro, que o meu amor às discussões não me torne importuno, pelo desejo de estabelecer entre nós um diálogo capaz de deixar-nos íntimos e apertar mais os laços de amizade.
Teodoro — De nenhum jeito, Sócrates, chegarás a ser importuno. Porém pede a um destes meninos que te responda, pois não estou habituado a esse tipo de conversação e já passei da idade de aprender. Tudo isso fica bem para eles, que só terão a lucrar; quando se é moço, tudo é fácil. Porém, uma vez que já começaste, não largues Teeteto, interroga-o.
Sócrates — Ouvistes, Teeteto, o que disse Teodoro? Creio que não pensas em desobedecer-lhe, além de não ficar bem a um jovem, em assuntos dessa natureza, não acatar as prescrições de um sábio. Cria coragem, pois, e responde à minha pergunta: No teu modo de pensar, que é conhecimento?
Teeteto — Terei de obedecer, Sócrates, uma vez que o ordenais. De qualquer forma, se eu cometer algum erro, vós ambos me corrigireis.
IV — Sócrates — Perfeitamente; no que for possível.
Teeteto — Então, a meu parecer, tudo o que se aprende com Teodoro é conhecimento, geometria e as disciplinas que enumeraste há pouco, como também a arte dos sapateiros e a dos demais artesãos: todas elas e cada uma em particular nada mais são do que conhecimento.
(...)
Sócrates — Mas o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que há conhecimento, nem quantos conhecimentos particulares pode haver; minha pergunta não visava a enumerá-los um por um; o que desejo saber é o que seja o conhecimento em si mesmo. Será que não me exprimo bem?
Teeteto — Ao contrário; exprimes-te com muita precisão.
Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém nos perguntasse a respeito de alguma coisa vulgar e corriqueira, por exemplo: o que é lama, e lhe respondêssemos que há a lama dos oleiros, a dos construtores de fornos e a dos tijoleiros, não nos tornaríamos ridículos?
Teeteto — É provável.
Sócrates — Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreende o que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos que se trata da lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro artesão. Ou achas que alguém entenderá o nome de alguma coisa, se desconhece sua natureza?
Teeteto — De forma alguma.
Sócrates — Não compreenderá, pois, o conhecimento do sapateiro quem não souber o que seja conhecimento.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — Logo, não compreenderá a arte do sapateiro nem qualquer outra arte, quem não souber o que seja conhecimento.
Teeteto — Exato.
Sócrates — É, por conseguinte, ridícula a resposta de quem é perguntado o que seja
conhecimento, sempre que acrescenta o nome de determinada arte. Falou em conhecimento de alguma coisa; porém não foi isso que lhe perguntaram.
Teeteto — Realmente.
Sócrates — Em segundo lugar, embora pudesse dar uma resposta simples e curta, fez um rodeio de nunca mais acabar. Assim, quando perguntado a respeito de lama, poderia ter respondido por maneira trivial e simples, que lama é terra molhada, sem dar-se ao trabalho de dizer quem a emprega.
(...)
Teeteto — No entanto, Sócrates, a questão por ti apresentada a respeito do conhecimento, não saberei resolvê-la (...) Do que se colhe que, mais uma vez, Teodoro não falou a verdade.
Sócrates — Como? Se ele te houvesse elogiado por correres bem, afirmando nunca ter encontrado entre os moços quem te vencesse na carreira e, depois, nalguma competição fosses vencido por um homem feito e de pés velozes achas que seu juízo teria sido menos verdadeiro?
Teeteto — Não, decerto.
Sócrates — E agora, parece-te que descobrir o conhecimento tal como o apresentei há pouco, seja tarefa secundária e não um tema da mais alta responsabilidade?
Teeteto — Não, por Zeus; é dos mais difíceis.
Sócrates — Sendo assim, readquire a confiança em ti próprio e não desfaças no testemunho de Teodoro, esforçando-te quanto puderes para encontrar a explicação das coisas, principalmente do que venha a ser conhecimento.
Teeteto — Quanto a esforçar-me, Sócrates, podes ficar tranqüilo.
(...)
Teeteto — Convém saberes, Sócrates, que já por várias vezes procurei resolver essa
questão, por ter ouvido falar no que costumas perguntar sobre isso. Porém não posso convencer-me de que cheguei a uma conclusão satisfatória, como nunca ouvi de ninguém uma explicação como desejas. Apesar de tudo, não consigo afastar da idéia essa questão.
Sócrates — São dores de parto, meu caro Teeteto. Não estás vazio; algo em tua alma deseja vir à luz.
Teeteto — Isso não sei, Sócrates; só disse o que sinto.
Sócrates — E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou filho de uma parteira famosa e imponente, Fanerete?
Teeteto — Sim, já ouvi.
Sócrates — Então, já te contaram também que eu exerço essa mesma arte?
Teeteto — Isso, nunca.
Sócrates — Pois fica sabendo que é verdade; porém não me traias; ninguém sabe que eu conheço semelhante arte, e por não o saberem, em suas referências à minha pessoa não aludem a esse ponto; dizem apenas que eu sou o homem mais esquisito, do mundo e que lanço confusão no espírito dos outros. A esse respeito já ouviste dizerem alguma coisa?
Teeteto — Ouvi.
(...)
VIII — Volta, pois, para o começo, Teeteto, e procura explicar o que é conhecimento. Não me digas que não podes; querendo Deus e dando-te coragem, poderás.
Teeteto — Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não esforçar-me para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhecimento não é mais do que sensação.
(...)
Sócrates — E se alguém te perguntasse: Com que o homem vê o branco e o preto e com que ouve o agudo e o grave? penso que lhe responderias: com os olhos e com os ouvidos.
Teeteto — Certo.
Sócrates — Reflete um pouco, para dizer qual é a fórmula mais certa: Vemos com os olhos, ou por meio dos olhos? e Ouvimos com os ouvidos, ou por meio dos ouvidos?
Teeteto — Quer parecer-me, Sócrates, que é por meio dos órgãos, não com eles, que
percebemos alguma coisa.
Sócrates — Seria absurdo, menino, se uma quantidade enorme de sensações estivessem apinhadas dentro de nós como num cavalo oco de pau, sem se relacionarem com uma única idéia, ou seja a alma ou como te aprouver denominá-la, ponto de convergência delas todas,
por meio da qual, usada como instrumento, percebemos todo o sensível.
Teeteto — Essa explicação me parece mais certa do que a outra.
Sócrates — A razão de eu exigir em nosso diálogo tamanha precisão, é para sabermos se não há em nós um princípio, sempre o mesmo, com o qual, por meio dos olhos, atingimos o branco e o preto, e, por meio de outros órgãos, outras qualidades, e se, interrogado, poderias relacionar tudo isso com o corpo. Mas talvez seja melhor que a resposta parta de ti mesmo, em vez de eu formulá-la com tanto trabalho. Dize-me o seguinte: os órgãos por intermédio dos quais sentes o quente e o seco, o leve e o doce, tu os localizas no corpo ou noutra parte?
Teeteto — Em nada mais, se não for no próprio corpo.
Sócrates — E não quererás, também, admitir que tudo o que sentes por meio de uma faculdade não podes sentir por meio de outra? Assim, o que é percebido por meio dos olhos não o será pelos ouvidos, e o contrário: o que percebes pelo ouvido, não perceberás pelos olhos.
Teeteto — Como não hei de querer?
Sócrates — E no caso de conceberes, ao mesmo tempo, alguma coisa por meio desses dois sentidos, não poderás ter alcançado essa percepção comum nem só por meio de um nem por meio do outro.
Teeteto — De jeito nenhum.
Sócrates — E a respeito do som e da cor, não admites, inicialmente, que ambos existem?
Teeteto — óbvio.
Sócrates — E também que cada um difere do outro, mas é igual a si mesmo?
Teeteto — Como não?
Sócrates — E que juntos são dois, e cada um em separado é apenas um?
Teeteto — Isso também.
Sócrates — E a semelhança ou dissemelhança entre eles, não és também capaz de
investigar?
Teeteto — Talvez.
Sócrates — E por meio de que percebes tudo isso a respeito de ambos? Só por meio da vista ou só por meio do ouvido é que não poderás apreender o que apresentam de comum. Aí vai uma outra prova, em reforço do que dissemos. Se fosse possível determinar até que ponto eles são ou não são salgados, saberias dizer-me por meio de que faculdade os examinarias? Não haveria de ser nem com a vista nem com o ouvido, porém com algo diferente.
Teeteto — Sem dúvida: a faculdade que tem por instrumento a língua.
Sócrates — Muito bem. Mas, por qual órgão se exerce a faculdade que te permite conhecer o que há de comum a todas as coisas e às de que nos ocupamos, para que de cada uma possas dizer que é ou não é, e tudo o mais acerca do que há pouco te interroguei? Para isso tudo, que órgão quererás admitir, por meio do qual perceberá as coisas o que em nós percebe?
Teeteto — Referes-te a ser e a não-ser, semelhança e dissemelhança, identidade e diferença, e também à unidade e aos mais números que se lhe aplicam. Evidentemente, tua pergunta abrange, outrossim, o par e o ímpar e tudo o mais que lhes vem no rastro, desejando tu saber por intermédio de que parte do corpo percebemos tudo isso, direi: com a alma.
Sócrates — Acompanhas-me admiravelmente bem, Teeteto; foi isso exatamente o que perguntei.
Teeteto — Por Zeus, Sócrates; não sei como responder, salvo dizer que se me afigura não haver um órgão particular para essas noções, como há para as outras. A meu parecer, é a alma sozinha e por si mesma que apreende o que em todas as coisas é comum.
* Para ver o texto completo, acessar
http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/teeteto.pdf